segunda-feira, 2 de julho de 2012

Obra-Prima

Preparo-me agora para aquilo que será o maior texto que já escrevi, já escrevi e publiquei três textos hoje, que serviram apenas de aquecimento para os meus dedos que se finalizam em gânfias ameaçadoras. Estou num local familiar, escondido pela sombra, e rodeado de amigos, um lobo cinzento, a coruja negra, um gato vermelho, e uma serpente dourada. Outros nos rodeiam mas não merecem nota, pelo menos ainda não.

Mais uma vez a minha escrita é motivada pelo ilustre gato marinho com quem agora raramente comunico, apesar da minha oportunidade para o fazer seja maior. Começarei então por aquilo que fica em mim gravado quando penso nessa criatura.
Ela é e será sempre um modelo de comparação, aquilo que em tempos achei que era o certo para os três, sendo um ser tão ambíguo e dotado de tantas faces que saciaria sem dúvida qualquer necessidade dos meus reinos interiores, no entanto na altura isso não estava destinado e não creio que o esteja agora, o que é pena tendo em conta a sua não indiferença declarada ao mensageiro. Já nem penso em razões, pois uma mente tão volátil como aquela vive muito de reacção e pouco de preempetividade... algo que sempre me chamou. Agora que penso nisso, talvez pudesse fazer mais por mim, talvez pudesse reescrever a história, mas já não tenho paciência. Como referi algures o lobo está velho, e cansado da caçada. Talvez o corvo voe novamente sobre a selva urbana em busca de prata escondida, mas não será hoje nem amanhã, por uma vez o corvo quer defender os seus tesouros, em vez de procurar os que não lhe pertencem.
Reina a paz nesta fronteira.

Neste momento sinto-me tentado a falar daquela que é raiz do meu quadrado, mas não o farei para já, pois ainda há muito por mencionado, e quero, por assim dizer, e não tirando o mérito a todos os outros assuntos pendentes, deixar o melhor para o fim.

Falemos então do caminho. O meu "do".
É uma estrada de terra, consigo ver que é pouco caminhada pois há ervas a crescer por todo o lado livremente, como se nenhum pé ou roda as maltratasse. As linhas que o circundam são tortas e por vezes pouco claras, a vegetação, a terra ou os abismos prestam cerco às pedras que marcam a silhueta do trilho. Em frente pouco vejo, o nevoeiro castiga-me os olhos e encharca-me a roupa lentamente. Nunca chove por assim dizer, mas por vezes dou por mim a desejar que fosse esse o meu problema, assim teria uma desculpa para me abrigar e esperar por dias de sol. Isso era fácil de mais claro, em vez disso sou vítima de uma guerra de guerrilha constante, é esse o problema de ser o mais forte, nenhum obstáculo se atreve a ver a minha face, e quando o fizerem já estarei desabituado e sem forçar para conquistar outro gigante.
Mas esse dia ainda não chegou, e não chegará tão cedo. O Glutão ainda é rei deste território e a estrada leva-me para este, onde me espera tudo o que desejo.
Reira a paz nesta fronteira.

Amanhã mergulharei nas águas profundas para encontrar um velho amigo, um antro de sabedoria antiga e chicotes de carne que são tão afiados como as minhas garras. Estou contente por ver de novo o polvo desde a nossa ultima corrida. Sem dúvida vamos ser fúteis e inuteis, beber nos rios e mijar nos mares para manter o ciclo vivo. Mas não vamos falar do que realmente importa, da estrada e da cadeia alimentar. O polvo tem a sua agenda e eu tenho a minha, penso que a nossa relação será semelhante à da coruja negra, que me acompanha no silêncio inqualificável. Isso seria agradável.
Reina a paz nesta fronteira.

Conheci também um leopardo, o primeiro da sua raça a trilhar o meu caminho, apesar de visitar o seu habitat com frequência. Duas coisas me chamaram para este jovem ser, em primeiro o seu gosto pela rainha de negro, aquela que me inspira todos os dias e que será merecedora de tinta no templo em breve. O segundo factor é a carga dupla de forma perfeita que carrega ao peito, à semelhança do gato marinho . Há no entanto muitas diferenças entre estes felinos, em termos de sabedoria, e em termos de manifestação física e contacto com os vivos. O leopardo não é ambíguo, as suas manchas são uma máscara para um interior sedento de necessidades simples: sucesso, alimento, e foda. Essa realidade é limitativa para aquela que dorme dos dois lados da almofada simultaneamente, mas é também um lufada de ar fresco relativamente aos labirintos que encontro. Este é apenas um corredor, resta-me saber se quero abrir a porta.
Reina a paz nesta fronteira.

Penso que falarei agora daquele que é o meu maior desafio, a última fronteira, a meta que torna as seguintes metas parecerem apenas mais um passo. Sim, para grande espanto da minha parte, ainda busco a toupeira.
E ela dá-me fuga incessante como sempre, mantendo-se sempre à vista e sempre fora de alcance. Oiço-a a escavar círculos na terra sob as minhas extremidades, sem motivo aparente. Sei tão pouco sobre as suas intenções. Sei apenas que é uma criatura de bem, que sonha com um fim para a monotonia, com uma viagem permanente para outra terra, uma ilha para norte que comporta outros tantos que partilham do seu estilo. E mais nada. O que parece impossível pois a razão sente o vácuo e corre para perguntar qual a sequência completa. Se existir eu não a conheço, e não me parece que venha a conhecer tão cedo. Vou aprendendo histórias sobre o passado, nunca sobre o presente ou sobre o futuro. Isso não me sacia minimamente... mas se assim é porque não abandono o barco, tendo terra a vista em tantas fronteiras? Porque é que ambas as minhas partes vêem a solução numa criatura que é tão diferente do que tínhamos idealizado? Não é por promessas antigas, nem por teimosia, nem pelo sabor de desafio. Mas custa-me admitir tanto por algo que é os olhos de tantos é tão pouco. Penso que esta é a ultimate bet. Aquilo que vai definir se o meu julgamento ainda é claro ou se foi há muito corrompido pelos vermes da fruta que como todos os dias. Ainda sou o senhor das maçãs, ainda tenho os meus tesouros a defender e não quero transformar-me numa lebre para perseguir esta toupeira pelos túneis que esta criou. Afinal, a concepção criada pelo meu cérebro é que ela é a solução para o lobo e para o corvo, não para qualquer outro animal ou máscara que possa conjurar.
Há dois sois que não oiço as suas batidas. E o corvo pergunta-se se tudo estará bem, o lobo pergunta-se se é um sinal para mudança e para esquecer o coração e ouvir a mente. Mas nunca é a altura certa para tais decisões, hoje é dia de mais procura, e sei que há poucos limites para aquilo que estamos dispostos a fazer para encontrar esta presa. Temos medo do nosso poder, de que ninguém nos impeça de cometer erros... pois agora os animais partiram e estamos sozinhos no local que nos é familiar. Bebemos o rio e vamos agora mijar no mar, esperemos não nos afogar.
Reina a guerra nesta fronteira.

Nada.

Conheci uma coruja que acha que é nada.
Rara coruja negra que raramente pia,
voámos pelo bosque no trilho de uma fada
mas nada encontrámos senão aquilo que mais temia
Vazios sem tesouro mudámos o nosso rumo
trilhámos pela linha tapados pelo fumo
matámos o seu templo com um rio de fina tinta
intenções nunca as ouve passados dias trinta.
Companheiros estranhos que nunca se desejam
encontram felicidade em rios de línguas mortas
penas que se tocam, mas nunca se cortejam
bicos que se entre-olham e esboçam linhas tortas.

Poema feio e sem métrica que nunca será mais do que espaço
serve a metáfora de não sermos nada, senão o erro do meu traço.

O Início do Fim

Afasto-me neste momento do pêlo e da pena, escrevo com a caneta para dizer algo que pertence apenas ao mundo do mensageiro.

Após a visualização da arte por parte de S.S. o meu cavalo caiu e eu tive uma visão do futuro, do derradeiro objectivo, do sonho partilhado entre os dois que são um. Vi que o sonho estava morto, que mesmo que fosse humanamente possível não serviria senão de memória de uma tentativa falhada, afinal, qual é o sentido da vida?

Para mim sempre foi a eternidade... o derradeiro destino era viver para sempre, metaforicamente e literalmente. Fazer algo tão grande e tão notável que o universo não pudesse esquecer esse feito... isso seria possível. Tantos outros o fizeram tantos anos atrás e desde que há memória escrita que pertencem à lore do mundo. A parte literal da minha demanda é mais complicada, a preservação do corpo em gelo para que um dia a tecnologia possa ressuscitar os mortos e devolvê-los à sua juventude... A criogenia existe e acredito piamente que o dia tudo isto será possível. No entanto ao observar a arte referida apercebi-me de duas coisas.

A primeira é que a raça humana não vai existir para sempre, isso é certo. A Terra deixará de ser habitável muito antes da nossa habilidade de colonizar outros mundos habitáveis. Estou certo deste facto devido aos ciclos inevitáveis o nosso planeta. A idade do gelo vai chegar, e nós, tão desesperados pelo nosso desenvolvimento individual, não vamos estar prontos.

A segunda é que mesmo que a Terra fosse habitável por um pouco mais, o seu espaço não é infinito, a população mundial cresce todos os anos apesar de ser fustigada permanentemente pelos quatro cavaleiros. Quem é que quereria levantar os mortos quando há já demasiados vivos? Quem é que quereria roubar a comida dos seus filhos para a dar à boca a alguém que já viveu demasiado? Cada era tem os seus artistas brilhantes, trazer os antigos nada trará ao Mundo.

Por isso a pergunta que faço é, mesmo que me pudessem ressuscitar no futuro, porque é que o fariam?

Isso traz-me uma nova pergunta, se a vida eterna não é possível, ela não pode ser o derradeiro objectivo, nesse caso, qual é o derradeiro objectivo? Fazer o máximo possível com aquilo que tenho e rezar pela imortalidade metafórica?

Parece-me pouco...

Regresso Tardio

Grandes mudanças se instalaram nesta casa.

O lobo dorme agora sob as estrelas, cansado do calor e da caçada... está a ficar velho, o que lhe traz sabedoria e lhe retira velocidade. Continua a ser o mais forte, mas nunca mais será o mais belo de entre os seus irmãos. O respeito da alcateia cresce, e a lenda ainda está viva, mas o sonho do velho lobo está cada vez mais distante, aquilo que ele realmente quer está cada vez mais morto, se é que essa realidade pode ter tons de cinzento.

O fogo azul viaja para o corvo,
que observa do topo do mais velho carvalho novo.
Os tesouros que o cercam brilhantes
Anseia pelo mais reluzente diamante,
que o complete para sempre.

É interrompido pelo cheiro a sangue morno
Voando rumo à serpente que descansa em torno
de uma grande túlipa cor de morte,
o corvo tenta a sua sorte
e cai de novo por terra.

Este é o presente da irmandade, apresentado fresco mas corrompido pelo passado a meio termo, seguramente relatado em seguida, para todas as estrelas que se tornaram em olhos. Duas brilham com mais intensidade, tendo folheado o tomo pela manhã, regressarão sem dúvida com o crepúsculo, assim que os arautos da desgraça se fizerem ouvir pelas ondas do lago.